Reduzir gastos públicos é tema recorrente em praticamente todas as democracias, mas poucas iniciativas ganharam tanta visibilidade – e terminaram de forma tão dramática – quanto o Departamento de Eficiência Governamental (DOGE). Criado já nos primeiros dias do segundo mandato de Donald Trump, o órgão foi entregue a Elon Musk com a meta declarada de cortar US$ 2 trilhões do orçamento federal em quatro anos. O resultado? Fissuras internas, acusações de golpe, desgaste político e uma dissolução oficial em apenas oito meses.
Ao longo deste guia definitivo, destrinchamos o nascimento, o funcionamento, o colapso e as lições que o DOGE deixa para gestores públicos, investidores e qualquer pessoa interessada em reformas estruturais. Vamos entender:
- Por que Musk foi convidado a liderar um órgão federal;
- Quais métodos foram empregados para atingir as metas de austeridade;
- Como a relação Trump–Musk implodiu em praça pública;
- O papel dos conflitos sucessórios no fim do departamento;
- As lições práticas sobre gestão, governança e comunicação em grandes organizações.
1. A gênese do DOGE: promessas de campanha e o contexto político
1.1 O segundo mandato de Donald Trump
Reeleito em uma disputa apertada, Donald Trump assumiu o segundo mandato com dois compromissos centrais: manutenção da política externa protecionista e redução maciça dos gastos federais. O rombo fiscal – ampliado pela pandemia e por pacotes de estímulo – forneceu o pano de fundo perfeito para um discurso firme de enxugamento de despesas.
1.2 Por que Elon Musk?
Conhecido por transformar setores inteiros (automobilístico, aeroespacial, telecomunicações), Musk despertava em Trump a imagem de “outsider” capaz de chacoalhar a burocracia. Além disso, o bilionário era um aliado político desde 2022, quando apoiou publicamente medidas como cortes de impostos corporativos e desregulamentação ambiental. Nomeá-lo para chefiar o DOGE serviu como sinal de que o governo levaria a sério a eficiência de processos – ainda que, na prática, misturasse interesses privados e públicos.
1.3 Metas declaradas: cortar US$ 2 trilhões
O valor não foi escolhido aleatoriamente. Estudos internos apontavam que um déficit anual de cerca de US$ 1,8 trilhão ameaçava elevar a dívida pública a patamares críticos em dez anos. A meta de US$ 2 trilhões exigia ações drásticas: reestruturação de agências, congelamento salarial, revisão de contratos, digitalização de serviços e venda de patrimônios considerados ociosos. O cronograma era agressivo: poupar metade já nos dois primeiros anos.
2. A estrutura do departamento e suas primeiras ações
2.1 Modelo organizacional inspirado na cultura de startups
Musk importou para Washington a lógica de “foguete em lançamento”: equipes enxutas, hierarquia plana, metas semanais e, sobretudo, tolerância a falhas rápidas. Na teoria, isso prometia agilidade. Na prática, chocou-se com as rigorosas exigências de um órgão público: licitações, auditorias, sindicâncias e comitês de ética.
2.2 Ferramentas de corte: demissões e cancelamento de contratos
As primeiras medidas vieram em ondas:
- Demissões em massa: mais de 12 mil servidores foram colocados em licença não remunerada ou desligados mediante acordos precários de separação;
- Revisão de contratos federais: suspenderam-se construções de infraestrutura, compras de equipamentos militares não prioritários e parcerias com ONGs;
- Moratória em repasses estaduais: programas de saúde e educação sofreram atrasos, o que gerou pressão de governadores, inclusive republicanos.
Em conjunto, as medidas estimaram uma economia inicial de US$ 280 bilhões, mas também provocaram ondas de processos judiciais alegando violação de cláusulas trabalhistas e contratos em vigor.
2.3 Reações iniciais do Legislativo e de agências federais
O Congresso passou a exigir relatórios mensais de impacto socioeconômico. Agências como o Escritório de Orçamento do Congresso (CBO) alertaram para externalidades negativas: desaceleração do PIB, aumento do desemprego em setores estratégicos e queda na arrecadação tributária. Ainda assim, Trump manteve o discurso de que as “dores iniciais” seriam compensadas por um Estado mais magro.
3. As fissuras internas: metas reduzidas, embates com ministros e a relação Musk–Trump
3.1 Revisões de meta: 2 trilhões → 1 trilhão → 150 bilhões
No quarto mês de operação, ficou evidente que cortes judiciais, reintegrações e multas diminuiriam as economias projetadas. O DOGE revisou sua meta para US$ 1 trilhão, em seguida para US$ 150 bilhões. Cada recuo minava a confiança do mercado e de parceiros políticos, dando argumento à oposição que já apontava o órgão como um “experimento corporativista mal planejado”.
3.2 Conflito com Marco Rubio, Sean Duffy e outros membros do gabinete
Ao impor cortes que afetavam infraestrutura portuária e logística, Musk entrou em rota de colisão com Marco Rubio (Secretário de Estado) e Sean Duffy (Secretário de Transportes). Eles alegavam que sacrificar obras em andamento prejudicaria cadeias de suprimento justamente quando o país enfrentava uma disputa comercial com a China. As reuniões de gabinete tornaram-se palco de trocas de farpas públicas, vazadas à imprensa.
3.3 A guerra de tarifas e o rompimento público
Em paralelo, Trump elevou tarifas sobre aço e componentes eletrônicos. Musk, cuja cadeia produtiva na Tesla e na SpaceX depende de importação de ligas metálicas, criticou as medidas ao vivo em um fórum econômico. Trump respondeu em suas redes classificando o aliado de “instável”. Dias depois, anunciou que Musk havia sido demitido do DOGE, contrariando a versão do bilionário de que ele próprio pedira para sair. O episódio marcou o início do colapso.
4. A sucessão conturbada: Amy Gleason vs. Steve Davis
4.1 O vácuo de poder e o papel da Casa Branca
Com Musk fora, a diretora-adjunta Amy Gleason – servidora de carreira com experiência em TI na saúde – assumiu interinamente. Paralelamente, Steve Davis, engenheiro de longa data na órbita de Musk, se recusou a deixar o posto de diretor operacional. Essa ambiguidade criou dois centros de comando, confundindo subordinados e fornecedores.
Imagem: bella
4.2 Tentativa de golpe interno e descentralização
Davis convocou reuniões paralelas alegando ter “autoridade moral” para dar continuidade à visão original de eficiência. Gleason, respaldada por memorandos oficiais da Casa Branca, reafirmou ser a líder legítima. Acusações de espionagem interna, desligamentos sumários e bloqueio de e-mail corporativo tornaram-se rotina. A imprensa classificou o episódio como “a primeira tentativa de golpe dentro de um órgão recém-criado”.
4.3 Impacto no moral e na entrega de projetos
Indicadores de produtividade despencaram. Auditorias concluíram que mais de 60% dos contratos avaliados não possuíam mais responsável formal, impossibilitando renegociações. Governadores ameaçaram processar o governo federal por atrasos em repasses. A Casa Branca resolveu intervir: exonerou os últimos aliados de Musk, manteve Gleason até que um relatório final fosse entregue e, na sequência, anunciou a dissolução do DOGE.
5. O fim do DOGE: análise dos fatores de fracasso e lições para políticas de austeridade
5.1 Falta de planejamento estratégico
Um corte de US$ 2 trilhões exigiria um roadmap minucioso, com projeção de impactos macroeconômicos, calendário legislativo e negociação setorial. Nada disso foi apresentado publicamente. A pressa em lançar o órgão, somada à ausência de estudos de viabilidade, criou um déficit de credibilidade que só aumentou com as revisões de meta.
5.2 Governança e conflito de interesses
Nomear um executivo que mantém participação acionária em empresas que contratam ou vendem para o governo rompeu boas práticas de compliance. Mesmo após declarar “blind trust”, Musk seguiu reunindo-se com fornecedores que, potencialmente, poderiam ser afetados por cortes. O aparelhamento político foi outro entrave: cargos-chave preenchidos por leais ao presidente ou ao bilionário, sem experiência em orçamento público.
5.3 Comunicação e alinhamento político
A narrativa oficial mudava a cada semana: ora o DOGE prometia gastar menos, ora prometia gastar melhor. Falhou-se em explicar à população como o corte afetaria serviços essenciais e como seriam compensadas externalidades. Resultado: perda de apoio de congressistas que temiam reeleição ameaçada.
6. O que o caso DOGE ensina sobre liderança, inovação e gestão pública
6.1 Startups vs. burocracia estatal
Transplantar práticas ágeis do Vale do Silício para o serviço público pode gerar ganhos de eficiência, mas existem limites estruturais: leis de contratação, estabilidade do servidor e controles de transparência não podem ser contornados via “modo startup”. O dogma “move fast and break things” (mova-se rápido e quebre coisas) conflita com a necessidade de garantir continuidade de serviços essenciais.
6.2 A importância de metas realistas e indicadores
Metas agressivas podem inspirar, mas precisam vir acompanhadas de:
- Indicadores-chave de performance (KPIs) claros e auditáveis;
- Planos de contingência para quando variáveis externas mudam (ex.: guerra comercial);
- Tranched targets: marcos intermediários revistos sem comprometer a narrativa;
- Matriz de responsabilidade (RACI) bem definida para evitar sobreposição de papéis.
6.3 Estratégias para mitigação de riscos em grandes reformas
Grandes cortes ou fusões de órgãos exigem governança de portfólio. Isso inclui:
- Estabelecer comitês independentes de auditoria;
- Criar canais de denúncia para irregularidades;
- Separar, formalmente, interesses privados dos decisores-chave;
- Prever cláusulas de reversão que permitam recontratar serviços essenciais rapidamente.
Conclusão
O colapso do DOGE ilustra que boa intenção e capital político não bastam para reformar estruturas públicas complexas. A combinação de metas megalomaníacas, gestão carismática porém centralizadora e falta de ancoragem em estudos técnicos produziu um “voo de galinha” orçamentário: decolagem ruidosa, sustentação curta e aterrissagem forçada.
Mais do que uma curiosidade histórica, o episódio oferece lições valiosas:
- Inovações de gestão precisam ser adaptadas ao arcabouço legal existente;
- Transparência e alinhamento político são tão importantes quanto habilidades técnicas;
- Governança robusta e independência nas lideranças evitam personalismos que põem em xeque a institucionalidade.
Para formuladores de políticas no Brasil e no mundo, fica o alerta: reformas estruturais exigem planejamento de longo prazo, comunicação consistente e liderança plural. Sem esses pilares, mesmo o empresário mais visionário ou o presidente mais determinado encontrará o mesmo destino do DOGE: um caso de estudo sobre como não conduzir mudanças na máquina pública.
